Em tempos de ditadura da felicidade, eu devo evitar ser feliz?
Já ouviram aquela expressão: “não sei porque isto está acontecendo justo comigo?”
Em março de 2011, Luiz Felipe Pondé, um dos mais brilhantes pensadores da atualidade, publicou na folha de São Paulo uma coluna intitulada “Deus me livre de ser feliz”[1]. Uma narrativa instigante, bem elaborada, bem construída, como se espera de um acadêmico da mais alta cátedra, cujo conteúdo hoje podemos imaginar possa ser mantido no “quadrante” dos textos que debatem a tal “ditadura da felicidade” da qual, nós devemos nos manter afastado.
Aliás, falar de ditadura da felicidade também se tornou agenda em muitas correntes de pensamento, ora na televisão, ora nos podcasts ou mesmo nos “happy hours”. Surfar na contracultura também nos faz pegar ondas incríveis. Basta escolher o melhor momento, como o que nos sugere o psicólogo Edgar Cabanas em seu livro “A ditadura da felicidade: como a ciência e a indústria da felicidade controlam nossas vidas”[2], escrito em parceria com a socióloga Eva Illouz. Em sua obra, os autores afirmam que o discurso de que felicidade depende apenas de você é “promessa falsa” e inalcançável que nos deixa constantemente insatisfeitos e culpados. “Se não houver bem-estar social, não há bem-estar individual” … Perfeito. A felicidade é um bem público e coletivo e como tal deve ser vivenciada, permitindo a todos o acesso aos seus benefícios.
Entretanto, creio que temos aqui uma dialética desafiadora, sobre a qual podemos trazer alguma luz para que o leitor, utilizando do seu livre arbítrio, possa fazer suas escolhas. Aparentemente divergentes, as duas linhas de pensamento se completam e, como poderemos atestar, estão perfeitamente alinhadas com o pensamento mais básico acerca da felicidade, muitas vezes deturpado (sim) pelos interesses econômicos ou pelo movimento do “I can all alone” que acabam por nos fazer perder um tempo precioso na construção (sim, construção) da felicidade.
Senão vejamos: Pondé nos fala de experiências cotidianas, que muitas vezes nos cobram um preço alto para nos oferecer pequenos lampejos de felicidade, como por exemplo, perder horas no trânsito para chegar à praia no feriado de carnaval. A questão é: “onde está a felicidade?” ou “onde estão nossos olhos”, como sugere Rubem Alves. Será ficar horas no trânsito ou aproveitar o feriado de carnaval? Creio que nós tendemos a escolher a segunda opção e é natural que seja assim pois (inclusive para nós, mineiros) um feriadão na praia é tudo de bom. Mas e o engarrafamento, perguntarão os contrariados de plantão?
Vejamos como devemos entender essas premissas. A terceira lei de Newton nos fala de ação e reação, ou seja, para cada ação corresponde uma reação de igual intensidade. É de domínio geral que nós, gostando ou reclamando de um determinado efeito, amiúde, nos esquecemos das causas. Já ouviram aquela expressão: “não sei porque isto está acontecendo justo comigo?” Pura pressa para mudar logo de assunto ou então aquela preguiça orgânica de raciocinar com mais clareza e assertividade. Assim, no caso em questão, podemos analisar de várias maneiras: primeiro, por que não saímos mais cedo? segundo, por que não escolhemos o caminho mais fácil? e terceiro (para estacionar em três alternativas), por que não avaliamos a relação custo x benefício da nossa escolha? O que são 3 ou 4 horas de trânsito engarrafado se nós iremos apreciar 4 ou 5 dias de descanso? Será que também nesse caso esperamos uma solução instantânea para os nossos problemas, esquecendo a longa trajetória que nos trouxe até eles?
Penso que muitas vezes somos um pouco injustos com as oportunidades que a vida nos oferece. Temos por hábito ancestral, ver sempre o copo meio vazio. É urgente nos educarmos para agir de forma contrária, por uma simples razão: o que pensamos forma uma espécie de atmosfera, na qual estamos inseridos, para o bem ou para o mal. Neste caso, a conclusão é que, se temos um propósito autêntico, legítimo, motivador, as horas no trânsito se tornam secundárias e podemos ser felizes sim, enquanto ouvimos aquela rádio preferida, dirigindo a 20 quilômetros por hora, sabendo que em breve estaremos à beira-mar, experimentando deliciosas sensações.
Para corroborar esse pensamento, vamos nos lembrar de “O mito de Sísifo”, onde um personagem da mitologia grega foi condenado a realizar repetidamente a tarefa de empurrar uma pedra até o alto de uma montanha, para ver ela rolar novamente montanha abaixo, invalidando totalmente o esforço despendido, além de acrescentar ao nosso personagem, uma terrível sensação de inutilidade.
Esse é o problema: muitas vezes fazemos grandes (ou pequenos) esforços e não alcançamos os resultados esperados, o que nos gera frustração e desânimo. No caso que estamos avaliando, a sugestão é planejar adequadamente o feriado de carnaval, para que as 4 horas de estrada também façam parte do seu quadro de felicidade, não porque seja de fato divertido ficar preso no trânsito, mas, sim, porque compreendemos que para aproveitar aquele momento, muitas vezes precisamos nos preparar para ele adequadamente.
E falando em aproveitar o momento, trazemos outro grande pensador contemporâneo para nossa conversa, preparando nossa reflexão para o esperado desfecho sobre a “ditadura da felicidade”. Falamos do filósofo Clóvis de Barros. Perguntado, certa vez, sobre como definiria a felicidade ele foi preciso como Guilherme Tell e a flecha na maçã, ao responder: “Um instante de vida que você gostaria que não acabasse”. Considero uma brilhante definição, mas me chama a atenção uma palavra em especial: “instante”. Por que ela é tão especial assim? Porque nos sugere uma forma desafiadora e quase inédita de compreender a felicidade: os fragmentos de momentos do nosso dia a dia podem, sim, nos trazer felicidade e, de fato, estão ali exatamente para isso.
Sim, podemos (e devemos) vivenciar a felicidade como pequenas experiências do cotidiano. Não devemos ficar esperando a vida passar para “um dia ser feliz”. É um equívoco pensar desta forma. A felicidade, embora assim tenhamos aprendido desde a nossa tenra infância, não é recompensa; felicidade é construção. Por este motivo, cada momento de nossas vidas, mesmo os mais simples ou tristes, pode ser um motivo para reconhecermos a felicidade diante de nós.
Bem, parece que temos então aqui um manual para sermos felizes, o que nos leva ao módulo de encerramento da nossa conversa: a “ditadura da felicidade”, ou a “obrigação de sermos felizes a qualquer preço”. Eu diria que estamos surfando na onda errada. E isso pode estar associado aos grupos onde costumamos pesquisar sobre felicidade. Para os mais jovens felicidade é “adrenalina” é “vida intensa”, é “experimentar tudo”. Avaliações incompletas, como toda experiência juvenil de nossas vidas. Para as pessoas maduras, a felicidade ganha outros contornos, significando, por exemplo, uma boa companhia, um bom vinho, uma boa leitura, desafios que nos movem para a frente, vida com qualidade etc.
Aparentemente, a mensagem da obrigação de ser feliz está muito dirigida aos jovens e seus parâmetros de vida bem diferentes dos mais experientes. A mensagem dirigida a eles envolve estética, tribalismos, fortes experiências, fotos perfeitas nas redes sociais, interações superficiais e outros atributos que, na verdade os mantém em uma vida um pouco mais rasa e sem sentido. São direcionados a um comportamento que, muitas vezes não desejam, mas, os “algoritmos” impõem. E sem que percebam, deixam-se levar pelas ondas, quando deveriam tomar os remos de seus barcos e assumir o controle de suas vidas.
Talvez o que falte seja levar a grande pedra até o topo da montanha e conseguir um jeito para que ela fique lá. Uma vida com sentido é uma vida que vale a pena ser vivida e, muitas vezes, ficamos esperando esse momento chegar quando na verdade ele está ao nosso lado a todo momento em todos os dias, mesmo naqueles em que parece que nada vai dar certo. Neste sentido, pode até parecer um modelo de ditadura, mas prefiro pensar que se trata de escolhas. Quer saber como identificamos uma boa vida? Olhe para trás e pergunte se valeu a pena.
Muitas vezes, criticamos as coisas que acontecem, dizendo que talvez tenham chegado “tarde demais”. Penso que devemos refletir se, no caso do resgate legítimo do direito de ser feliz, ele não está chegando “cedo demais”. Espero que não, pois já passa da hora de resgatarmos o valor das coisas simples que nos fazem pessoas melhores e, portanto, mais felizes.
Talvez ainda tenhamos que caminhar um pouco mais, antes de ouvir o barulho da festa. Ainda assim, não demos desprezar a oportunidade de ver a paisagem na estrada, afinal, podemos fazer com que o caminho seja tão bom ou melhor que a chegada.
Afinal, o que tem de errado em ser feliz? Absolutamente nada. Mas sempre como escolha e não como falta dela.
Benedito Nunes é bacharel em direito, com especialização em Biopsicologia e mestrando em Gerontologia. É Diretor Executivo do Instituto Movimento pela Felicidade e uma pessoa com muita fé nas qualidades humanas.