PSICOLOGIA POSITIVA

por  Leila Damasceno

“VUCA” é uma sigla que surgiu na década de 90, na escola de exército estadunidense, para se referir ao mundo pós-Guerra Fria, marcado por características de volatilidade (“volatility”), incerteza “(uncertainty”), complexidade (“complexity”) e ambiguidade (“ambiguity”).

Embora tenha surgido no contexto militar, a sigla foi incorporada recentemente ao vocabulário corporativo, para se referir a um ambiente de insegurança e mudanças rápidas, onde a adaptação constante é necessária para a sobrevivência das empresas e prosperidade dos indivíduos.

Talvez em pouquíssimas outras ocasiões da história as características do “mundo VUCA” tenham sido tão facilmente identificáveis quanto hoje, momento em que se enfrenta globalmente a pandemia de doenças causadas pelo coronavírus.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT, a  queda acentuada e contínua das horas de trabalho em todo o mundo devido ao surto de COVID-19  significa que 1,6 bilhão de trabalhadores na economia informal – ou quase a metade da força de trabalho global – correm risco iminente de ter seus meios de subsistência destruídos.

Os dados apontam uma redução de 60% na renda dos trabalhadores informais em todo o mundo no primeiro mês de crise, tendo havido uma queda de 81% na África e nas Américas, 21,6% na Ásia e no Pacífico e 70% na Europa e Ásia Central. Em relação aos empregos formais, na comparação com os níveis pré-crise, referentes ao último trimestre de 2019, espera-se agora uma redução de 10,5% nas horas de trabalho, o equivalente a algo entre 25 milhões e 31 milhões de empregos em período integral [1].

Sem dúvida, neste momento em que falta trabalho, pode parecer inoportuno falar sobre felicidade e satisfação pessoal. Entretanto, ainda que de maneira pouco confortável, os momentos de crise costumam fazer surgir oportunidades de mudança – ou mostrar que elas sempre estiveram presentes e passaram despercebidas.

Sem descartar a consciência de que muitos precisarão, durante e após a pandemia, realizar qualquer atividade que possa garantir a subsistência, própria e da família, deixando de lado gostos ou preferências pessoais, a ideia desta reflexão é propor novas formas de enxergar o trabalho, para que, havendo qualquer margem de escolha, ela possa ser aproveitada de maneira a proporcionar maior satisfação pessoal e sentimento de realização profissional.

Os mais de vinte e cinco milhões de novos desempregados que podem surgir em virtude da pandemia [2] devem buscar novas ocupações. Essas novas atividades laborais podem ser fruto do redesenho de trabalhos anteriores ou tarefas inteiramente novas, resultado da identificação de tendências, habilidades, forças e virtudes que apontem para um novo caminho.

A fim de orientar essa mudança ou recomeço, é importante ter em mente, inicialmente, que as pessoas parecem ter começado a perceber que trabalhos destituídos de significado e de sentido parecem impactar negativamente na construção de bem-estar e na busca por autorrealização.

De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, 56% dos trabalhadores com carteira assinada no Brasil, no ano de 2018, se diziam insatisfeitos com seus empregos [3].

Talvez por esse motivo seja tão facilmente percebido o aumento da ocorrência, nos últimos anos, do abandono de carreiras, inclusive por profissionais que seriam considerados bem sucedidos, em que as pessoas deixam suas formações profissionais, seus diplomas e títulos, em busca de maior qualidade de vida.

Na realidade, fala-se em satisfação pessoal e profissional, qualidade de vida e bem-estar, mas é igualmente apropriado dizer que o que muitos profissionais têm buscado é encontrar a felicidade no trabalho.

É possível que essa afirmação carregue alguma estranheza inicial, decorrente de uma herança da psicologia como um todo – aí incluída a psicologia organizacional e do trabalho- que foi construída historicamente com foco no sofrimento psíquico do ser humano.

De fato, a psicologia “tradicional” ocupou-se primordialmente das patologias psíquicas, e sob essa influência desenvolveu-se a psicologia das organizações e do trabalho, que costumava ser eminentemente pessimista e direcionada aos problemas decorrentes das relações laborais.

Com o tempo, começou-se a sentir a necessidade de ressignificação da abordagem organizacional, o que veio ao encontro da criação da Psicologia Positiva, que surgiu para destacar as virtudes, as qualidades e as potencialidades humanas.

A partir de então, começou-se a refletir sobre a possibilidade de construção da felicidade no trabalho e qual seria o papel dos trabalhadores nessa composição. Afinal, o que as pessoas esperam dos seus trabalhos? Existem elementos ou fatores essenciais para que alguém alcance a felicidade no nessa área?

Antes de tentar definir qual seria a opção mais próxima da ideal para uma ocupação, é necessário falar sobre um fator muitas vezes superestimado na escolha da profissão: o dinheiro. Mais uma vez, não se trata de desconsiderar a importância da renda, mas apenas de reconhecer que sua influência na conquista da felicidade é comprovadamente limitada.

Estudos recentes demonstram que a relação entre riqueza e felicidade é diferente da que costumamos imaginar. Veja-se, por exemplo, a conclusão a que chegaram Daniel Kahneman e Angus Deaton (2010),  ganhadores do Prêmio Nobel de economia, que elegeram a felicidade como um dos temas de seus estudos: nos Estados Unidos, onde a pesquisa foi realizada, uma quantia acima de US$ 75 mil por ano não traz significativamente mais felicidade.

De acordo com os pesquisadores, ter pouco dinheiro estaria associado a maior ocorrência de insatisfação e dores emocionais, mas acima de determinado patamar, o acréscimo de renda não teria gerado alteração significativa nas respostas dos entrevistados.

Nas palavras de Tal Bem-Shahar (2018), doutor em Psicologia e Filosofia pela universidade de Harvard, onde foi professor por 25 anos,

“o rato de laboratório se sustenta com a esperança de que suas ações lhe darão algum benefício futuro, o que torna suas emoções negativas mais toleráveis. No entanto, uma vez que alcance seu objetivo e perceba que a prosperidade material não o faz feliz, nada mais o sustenta. É tomado por um senso de desespero e de desesperança, porque adiante nada mais há para buscar, nada que lhe permitirá vislumbrar um futuro em que poderia ser feliz. Há inúmeros exemplos de pessoas altamente bem sucedidas que entraram em depressão e se voltaram para o álcool e as drogas. Paradoxalmente, ‘conseguir’ realmente os faz menos felizes, pois, embora possam ter sido infelizes antes de realizar seus sonhos, foram sempre sustentados pela crença de que, quando chegassem lá, seriam felizes. E então chegaram lá, e o ‘lá’ aonde chegaram não está em lugar nenhum para ser achado. Tendo sido despojados da ilusão sob a qual a maioria das pessoas vive – de que a prosperidade material e o prestígio podem proporcionar felicidade duradoura-, ficam chocados com a síndrome do ‘e agora?’.

Além disso, é importante observar que, conquanto o nível de riqueza da população de diversos países tenha aumentado nos últimos cinquenta anos, as pesquisas não demonstram aumento da felicidade nos mesmos locais – ao contrário, esses níveis muitas vezes têm diminuído.

Assim, não sendo o valor do salário fator suficiente para garantir a satisfação do trabalhador, o que se deveria observar ao buscar uma ocupação?

Talvez uma ferramenta que venha para indicar o início de uma resposta esteja no que os especialistas definem como os três tipos de “orientação do trabalho”: tarefa, carreira e vocação.

De acordo com Seligman (2019a), criador da Psicologia Positiva, tarefa é aquela que alguém realiza apenas em troca do salário que receberá ao final do mês, sem buscar nada a mais. É apenas uma forma de se prover a subsistência, própria ou familiar. Nesse caso, normalmente o trabalhador conta os dias para o fim de semana, para as férias e para a aposentadoria, tem a impressão que o tempo demora a passar quando está trabalhando e não indica sua escolha profissional a parentes ou amigos.

Para o autor, a carreira, por sua vez, estaria ligada a um investimento um pouco mais profundo, com realizações relacionadas ao aspecto financeiro, mas também ao progresso profissional, representado pelas promoções. Além do aumento na renda, as promoções no trabalho trazem maior reconhecimento, prestígio e poder.

Entretanto, ao seu alcançar o último nível possível na carreira, começaria a alienação e a procura por satisfação em outro lugar. Nessa hipótese, a pessoa gosta do que faz, mas não espera estar no mesmo cargo após determinado período. Muitas vezes as tarefas parecem sem sentido, mas o trabalhador sabe que deve realizá-las de forma satisfatória para atingir uma ascensão profissional.

Por último, na definição de Seligman, a vocação seria um “compromisso apaixonado com o trabalho” (2019a, p. 190). As pessoas vocacionadas enxergam um significado maior em seus trabalhos, e sentem que contribuem para algo além delas.

Quando existe vocação, o trabalho em si mesmo traz realização e satisfação, independentemente de dinheiro ou ascensão na carreira. O indivíduo sente-se bem em relação ao trabalho porque tem prazer em realizá-lo e enxerga sentido na sua realização.

Entretanto, mais importante que a classificação é a descoberta de que qualquer tarefa pode tornar-se uma vocação e vice-versa:  “Um médico que veja seu trabalho como uma tarefa e esteja simplesmente interessado em ganhar dinheiro não tem vocação; um gari que veja seu trabalho como a missão de fazer do mundo um lugar mais limpo e mais saudável para se viver tem uma vocação.”[4]

Foi realizado um estudo, por Amy Wrzeniewski (2003), professora de administração na Universidade de Nova York, e seus colegas, com vinte e oito serventes de hospital cujas tarefas tinham a mesma descrição oficial. Os serventes que encaravam o trabalho como vocação se esforçavam para torná-lo significativo, enxergando a si mesmos como importantes para o processo de cura e trabalhando para atingir o máximo de eficiência possível. Nessa tarefa, tentavam antecipar as necessidades dos profissionais de saúde, a fim de que eles tivessem mais tempo para dispender com o tratamento propriamente dito. Para isso, extrapolavam suas tarefas obrigatórias, tentando, por exemplo, alegrar a vida dos pacientes. Enquanto isso, os serventes sem vocação viam seus trabalhos como simples limpeza dos ambientes.

Nesse ponto, cabe a pergunta: como encontrar uma vocação? Existem critérios objetivos capazes de tornar um trabalho mais satisfatório?

Autores ligados à psicologia positiva desenvolveram teorias acerca das características do trabalho, para explicar o que seria um trabalho de qualidade. De acordo com Hackman e Oldham (1975), seriam os principais atributos de um trabalho satisfatório:

  1. Variedade de habilidades: as tarefas exigem habilidades diversas;
  2. Identidade com a tarefa: realizar a tarefa do início ao fim;
  3. Significado da tarefa: consciência sobre o impacto que a tarefa produz na vida de outras pessoas;
  4. Autonomia: liberdade e independência para tomar decisões; e
  5. “Feedback”: retorno que gera motivação.

Adicionalmente, é importante que o trabalhador perceba que as atividades que desempenha em seu cotidiano laboral são compatíveis com suas virtudes e forças pessoais.

A fim de possibilitar essa análise, é preciso, antes, de certa dose de autoconhecimento. Caso tenha interesse em descobrir suas forças de caráter, de acordo com a classificação elaborada por Martin Seligman e Christopher Peterson (2004), o leitor pode realizar o teste do Instituto VIA, também chamado de Inventário “Values-In-Action”[5].

Esse teste é uma das ferramentas mais importantes da Psicologia Positiva, já que, ao mensurar as principais forças positivas de um indivíduo, permite que ele tome conhecimento das suas potencialidades e virtudes, e se aproxime de um caminho de autorealização.

A ligação da atividade com as forças de caráter do indivíduo, por sua vez, pode ser identificada em seu ápice quando o trabalhador entra em “flow”, ou “estado de fluxo”.

Segundo o criador do conceito, Mihaly Csikszentmihalyi (1990), em estado de fluxo o indivíduo se encontra completamente envolvido no que está fazendo, experimenta sensação de êxtase, ou de estar em uma espécie de realidade paralela e possui grande clareza interna sobre o que precisa ser feito e o quão bem está sendo feito. Ao mesmo tempo, o senso de tempo desaparece e a pessoa sente que faz parte de algo maior, enquanto o que está sendo feito se torna valioso por si mesmo, o que se relaciona diretamente com a noção de “vocação” mencionada anteriormente.

A pessoa que experimenta o “flow” é também invadida por um sentimento de serenidade e pela sensação de estar totalmente focada no momento presente, de forma que as horas parecem passar como se fossem minutos. Sem dúvida, alguém que trabalha em estado de fluxo encontrou ou está muito próximo de encontrar uma vocação.

Portanto, durante e após uma crise, é preciso enxergar que existem alternativas de melhoria.

O trabalho é uma dimensão importante na vida da maioria das pessoas, e a perda de um emprego ou uma situação em que a profissão escolhida deixa de atender às necessidades do indivíduo, sejam elas materiais, psicoemocionais ou de qualquer outro gênero, pode ser encarada como uma oportunidade para a mudança positiva.

Nesse sentido, é recomendável que se escolha um trabalho que permita utilizar as forças pessoais cotidianamente, ou redesenhar o trabalho preexistente de modo a empregar essas forças, sempre com a convicção de que é possível encontrar bem-estar, satisfação, qualidade de vida e – por que não? – felicidade no trabalho.

Leila Damasceno, auditora-fiscal do trabalho e especialista em Direito do Trabalho pela FGV/SP e em Psicologia Positiva, Ciência do Bem-Estar e Autorrealização pela PUC/RS. 

Referências:

Ben-Shahar, Tal. Seja Mais Feliz: Aprenda a ver alegria nas pequenas coisas para uma satisfação permanente. 2ª ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

Boehs, S.; Silva, N. Psicologia Positiva nas organizações e no trabalho: conceitos fundamentais e sentidos aplicados. 1 ª ed. São Paulo: Vetor, 2017.

Cooper, C.; Rothman, I. Fundamentos de Psicologia Organizacional e do Trabalho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2017.

Csikszentmihalyi, Mihaly. (1990). Flow: The Psychology of Optimal Experience.Journal of Leisure Research, 24(1), pp. 93–94. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/224927532_Flow_The_Psychology_of_Optimal_Experience>. Acesso em: 07/06/2020.

Kahneman, Daniel; Deaton, Angus. High income improves evaluation of life but not emotional well-being. 2010. Disponível em: < https://www.princeton.edu/~deaton/downloads/deaton_kahneman_high_income_improves_evaluation_August2010.pdf>. Acesso em: 07/06/2020.

“OIT: Perda de empregos aumenta e quase metade da força de trabalho global corre o risco de perder os meios de subsistência”. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_743197/lang–pt/index.htm>  . Acesso em 30/04/2020.

“OIT: quase 25 milhões de empregos podem ser perdidos no mundo devido à COVID-19”. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oit-quase-25-milhoes-de-empregos-podem-ser-perdidos-no-mundo-devido-a-covid-19/>. Acesso em 30/04/2020.

“OIT: metade dos trabalhadores latino-americanos tem meios de subsistência ameaçados”. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oit-metade-dos-trabalhadores-latino-americanos-tem-meios-de-subsistencia-ameacados/. Acesso em 04/05/2020

Paludo, Simone dos Santos; KOLLER, Sílvia Helena. Psicologia Positiva: uma nova abordagem para antigas questões. Paidéia, Ribeirão Preto ,  v. 17, n. 36, p. 9-20, 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2007000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13/05/2020.

Pedroso, Bruno et al. Desenvolvimento e validação da versão brasileira do Diagnóstico do Trabalho (Job Diagnostic Survey) de Hackman e Oldham. 2014, vol.21, n.2, pp.285-301. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/gp/v21n2/v21n2a06.pdf>. Acesso em: 07/05/2020.

Seligman, Martin E. P. Felicidade autêntica: use a psicologia positiva para alcançar todo o seu potencial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019a.

_____________. Florescer: Uma nova compreensão da felicidade e do bem-estar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019b.

TED – Flow – Estado de Fluxo – Mihaly Csikszentmihalyi . Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BAljbVf-HXA>. Acesso em: 13/05/2020.

Wrzesniewski, A., Rozin, P., & Bennett, G. (2003). Working, playing, and eating: Making the most of most moments. In C. L. M. Keyes & J. Haidt (Eds.), Flourishing: Positive psychology and the life well-lived (p. 185–204). American Psychological Association. Disponível em : <https://www.researchgate.net/publication/232516917_Working_playing_and_eating_Making_the_most_of_most_moments>. Acesso em 12/05/2020.

[1] https://nacoesunidas.org/oit-metade-dos-trabalhadores-latino-americanos-tem-meios-de-subsistencia-ameacados/

[2] https://nacoesunidas.org/oit-quase-25-milhoes-de-empregos-podem-ser-perdidos-no-mundo-devido-a-covid-19/

[3] https://exame.abril.com.br/negocios/dino_old/insatisfacao-no-trabalho-formal-atinge-mais-da-metade-dos-brasileiros-empreendedorismo-aparece-como-opcao/

[4] Wrzesniewski, A., Rozin, P., & Bennett, G. (2003). Working, playing, and eating: Making the most of most moments.

[5] O teste é gratuito e pode ser encontrado está disponível no seguinte endereço eletrônico: <https://www.viacharacter.org/pro/feliciencia/account/register>.